19.11.09

Oitenta anos de Samuel Rawet


Entre os meios de comunicação da comunidade judaica do Rio de Janeiro na década de 1950, o boletim O Espelho, publicado no subúrbio de Olaria por jovens filhos de imigrantes, foi onde estreou, com contos, críticas teatrais e desenhos, Samuel Rawet, que teria completado 80 anos este ano (nasceu em 23 de julho de 1929, na aldeia polonesa de Klimontow).

Apesar da inserção na vida brasileira, Rawet sentiu-se sempre um excluído, sentimento esse expresso já no livro de estréia, seu único texto "fácil", Contos do Imigrante, de 1956 (aqui, primeira edição, da José Olympio, com capa de Luis Canabrava, oferecida na Internet a R$ 125,00). Ano que, lembra o romancista Esdras Nascimento, foi apontado como um divisor de águas da literatura brasileira devido à publicação de Grande sertão: veredas e...do volume de Rawet!

Saudado como renovador da narrativa curta no Brasil, o jovem formado em Engenharia, cuja língua materna era o idish, teria sido motivo de justo orgulho comunitário não fosse sua contundência e sua visão pouco convencional do mundo, que até hoje produz estranhamento. Ele mesmo arcou com os custos de publicação de vários de seus livros, inclusive de ensaios (atualmente reunidos pela Editora Civilização Brasileira em dois volumes).

Rawet chegou ao Rio em 1936 e viveu no subúrbio até a juventude. Como engenheiro, integrou a  equipe de Oscar Niemeyer e foi o principal calculista do Congresso Nacional. Em 1963, mudou-se para Brasília, onde continuou a escrever contos, romances, ensaios, peças teatrais.

Por muito tempo, Rawet manteve-se fiel à Lei do clã. Mas o maior desejo era ser um brasileiro completo. Não um brasileiro aburguesado, e sim um carioca livre de injunções familiares. Via-se, como escreveu em mais de um ensaio, como dono e senhor de si mesmo e da geografia urbana, trilhando o caminho de bares, praças e gente de todo tipo. Daí, talvez, a necessidade de negar a própria erudição, que poderia colocá-lo sobre indesejado pedestal. Em entrevista ao jornalista Flavio Moreira da Costa em 1972, disse: “Sou fundamentalmente suburbano. Eu aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado, e acho essa a melhor pedagogia...”

Mas a fronteira entre imaginação e delírio um dia ficou confusa, como acontece com tantos gênios. Rawet largou a equipe de Niemeyer. E rompeu publicamente, em 1977, com a sociedade judaica que conhecia (e não com o judaísmo como ética e moral), por meio do ensaio Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê. “Estou farto de pathos, farto de ahhs!, ohhhs!, uhhhs!, arreganhos de dentes, deboches (...)”, escreveu. Anunciou que não queria mais saber de amigos judeus, comida judaica, negócios imobiliários judaicos... Morreu em Brasília, em 1984. Sozinho, mas não isolado, pois amigos escritores acolhiam-no, procuravam-no.

Entre os muitos intelectuais que se debruçaram sobre a obra do escritor, Pérola Engellaum, autora da tese de doutorado (UFRJ) Samuel Rawet, a alma que sangra (pode ser lida on line) perguntou: “Por que Rawet?” E assim respondeu:
“(...) Ele expressa em sua trajetória meus mais profundos conflitos, meus profundos temores. Enquanto lia Os sete sonhos e Abama, passei a respirar, a viver minha ancestral melancolia judaica, e estas são as melhores obras, sejam filmes, livros ou músicas, aquelas que nos levam aos nossos limites. Como os românticos, Rawet expressa seu desconforto em relação às engrenagens da modernidade. Expressa também sua indignação com a hipocrisia da comunidade judaica de sua época, que viveu um período de ascensão graças ao desenvolvimentismo do governo JK. Esse brado de inconformismo e revolta atravessa todos os movimentos críticos da modernidade, seja artística ou politicamente (...)”