19.5.10

Imagens de Vishniac

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Acima: menino vende arenque, prato essencial da mesa kasher no leste europeu; à esquerda, tecelã no trabalho, à direita, loja de miudezas. Polônia, circa 1935-38.


Menina de vestido xadrez, acima. Abaixo, carregador de rua



O lendário fotógrafo Roman Vishniac, responsável pelos últimos registros do judaísmo europeu oriental antes do Holocausto, ficou famoso por apenas uma parte de suas imagens, e uma parte que não corresponde ao todo. Esta é a tese de Maya Benton, curadora de uma coleção adquirida recentemente pelo International Center of Photography, exposta em  artigo no New York Times Magazine [ aqui, em inglês ]. Segundo o artigo, as pungentes imagens da vida em shtetls [ aldeias judaicas ] miseráveis, habitados por uma população religiosa e ingênua, distorceram não só a vida judaica mas a própria obra do fotógrafo.

Vishniac emocionou o público judeu, nas décadas posteriores à Segunda Guerra, com suas imagens de pessoas famintas, sem sapatos, com frio, em ruas enlameadas. Agora, passada a necessidade de símbolos fortes que dessem conta do luto insuperável do Holocausto, já se pode olhar o passado de modo diferente. E o que é diferente, na coleção dessas obras do fotógrafo, parece ser a diversidade judaica, o secularismo e o relativo conforto, em contraste com a miséria com a qual nosso olhar se havia habituado.

Daqui a cerca de um ano, o conjunto das fotos estará disponível para o público.

Em busca da paisagem ancestral

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Diante do passado traumático, que vem à tona mesmo quando se procura esquecê-lo, os judeus contemporâneos têm voltado no tempo e no espaço para entender “de dentro”, e não só intelectualmente, as circunstâncias que os formaram. É nesse contexto que leio “Udatchi - A árvore onde meu pai catava nozes” (editora Sefer), livro em que Michel Rosenthal Wagner, advogado paulista, conta como sua visão de mundo foi sacudida positivamente pela visita aos locais de infância de seu pai e avós (hoje na Ucrânia, antes Romênia e Áustria-Hungria), muitos deles ainda intactos no século XXI.

Segundo Michel, a viagem superou a satisfação de uma busca de raízes. Com poucas pistas, ele, que se considerava um judeu secular, diz ter encontrado mais que o aclaramento das histórias ancestrais ao passar por um “cataclismo espiritual” ao participar, em Uman, da grande festa do Ano Novo judaico, em meio a uma multidão de 28.000 religiosos reunidos nos arredores da tumba do Rabino Nachman de Breslav, bisneto de Baal Shem Tov, precursor do movimento chassídico.

Michel conheceu a sinagoga que seus avós freqüentavam em Sadagura, a casa onde moraram em Cernovitz, o restaurante e a mercearia da família, o gueto para onde foram deportados, um museu judaico. Poderia ser uma história de dor e perda, um reviver da tragédia, mas o mergulho articulou-se em torno da  "possibilidade poética, possível e prática de mudança de sentimentos de angústia para sentimentos de liberdade, tratando dos traumas geracionais que permeiam a vida de descendentes destas histórias”.

A partir da experiência, ele escreveu o livro e passou a dar palestras que estimulam as pessoas a “encontrarem suas sementes e a plantar seus próprios jardins com uma vida mais resolvida”.
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O imperativo moral e sionista de Avishai Margalit

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Qual o seu sonho para o futuro? – a pergunta do jornalista  [ leia clicando em Jerusalem Post, entrevista ] foi respondida assim pelo premiado filósofo israelese Avishai Margalit, o mais importante do país:

“A volta ao pequeno Israel que todos nós conhecemos e amamos, e acho que deveríamos fazer isso com o máximo de acordo que for possível. Devemos recuar, voltar atrás e nos concentrar em Israel. Pôr fim à ocupação é um imperativo moral e sionista”

Avishai recebeu o Prêmio Israel de Filosofia deste ano, tem uma penca de títulos e obras publicadas e é atualmente professor no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, EUA. Segundo ele, a atual calma em Israel não vai durar muito se não houver mudanças no status quo. “Às vezes uma paz imperfeita, que não é justa, é preferível a lutar por uma paz justa que pode criar uma tremenda injustiça no caminho”, disse.

15.5.10

Escrita brasileira, herança judaica e árabe

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Memória e Cinzas–Vozes do Silêncio (ed. Perspectiva, org. E. Schweidson)*


Página da HQ "La vida es bella", do artista gráfico argentino Sergio Langer
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* [  por Heliete Vaitsman* - em O Globo, caderno Prosa e Verso, 08/05/2010 ]
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Ao reunir nove ensaístas brasileiros que, partindo de saberes diversos, expõem as marcas que o nazismo deixou no corpo da humanidade, Memória e Cinzas – Vozes do Silêncio produz uma reflexão sobre a transgressão, operada pelo nazismo, de todos os limites do humano. Embora pensem o Holocausto para além da intenção didática, os textos, em seu conjunto, acabam por constituir uma advertência contra fatos e atos que conduzem ao totalitarismo, à violência e, no limite, ao extermínio planejado. O que leva milhões de seres pensantes a se curvar a palavras de ordem que negam a diferença e evocam aquilo que produziu Auschwitz, como se os crimes cometidos há apenas seis décadas fossem ecos tão longínquos que não merecessem mais ser temidos?
            Trata-se aqui de fatos inimagináveis. A fala, oposta às solenidades ocas, ajuda a navegar sobre o legado da fratura insuperável, enquanto fantasmas redivivos atualizam o passado: em 11 de abril último, 65º. aniversário da libertação do campo de concentração de Buchenwald, a extrema-direita húngara – que defende medidas "duras" contra judeus e ciganos, aos quais atribui boa parte dos males do país – conquistou 26 assentos no Parlamento. É a primeira vez que isso ocorre, desde a Segunda Guerra. Retórica similar vem ganhando votos em outros países. Se na primeira metade do século XX o palco das maiores carnificinas foi armado no coração da Europa culta, e não de um dia para o outro, como reagir a isso, agora? Nem é preciso chegar ao exagero dos Protocolos dos Sábios de Sião, até hoje divulgados em países árabes como se verdadeiros fossem. Observemos alguns fatos, sugere a psicanalista Edelyn Schweidson, organizadora do livro.
Fatos como a divulgação insistente, principalmente na França, de uma carta em que Freud se manifestou, em 1930, contrário à criação de um Estado judeu na Palestina (naquele momento, Freud ainda não se exilara em Londres, suas irmãs não haviam sido mortas em campos de extermínio e 50 milhões de pessoas não tinham perecido devido à guerra). Ou como a proclamação de alguns intelectuais sobre o "fim" inevitável de Israel, país que não mereceria existir devido aos seus "crimes inumeráveis" (a marca eterna, a singularidade que recusa o humano a certos grupos?)
Consciência e memória são eixos desse continuum que vem até os dias de hoje, analisado por cinco psicanalistas (além de Schweidson, Fabio Landa, Paulo Blank, Eduardo Vidal e Marylink Kupferberg), dois cientistas políticos (Renato Lessa e Sergio Paulo Rouanet), um doutor em teoria literária (Marcio Seligmann-Silva) e um editor/professor de teoria do teatro (Jacob Guinsburg). À atualidade, indiretamente, também nos remete neste livro um texto de Kafka sobre o idish, a língua dos judeus europeus orientais que o Holocausto quase extinguiu. A extinção não aconteceu. Hoje, não se estigmatiza mais uma "raça", conceito superado, porém bodes expiatórios (muçulmanos, judeus, ciganos, homossexuais) continuam disponíveis.
O Holocausto, ou Shoá, não é considerado um genocídio a mais, é o acontecimento singular, reitera este livro: o nazismo quis destruir um dos fundamentos da civilização ocidental para estabelecer uma sucessão de extermínios. O povo judeu, mas não só ele, devia desaparecer sem deixar vestígios. Tal memória, implacável, está sempre presente, ainda que silenciosa – inclusive no texto pessoal, poético, em que o psicanalista Paulo Blank percorre com a mãe imigrante as trilhas do afeto, "viajando" aos Montes Cárpatos enquanto o bonde carioca sacoleja da Praça 11 à Tijuca. Para romper os vazios de silêncio, é preciso reconhecer as cinzas. Como voltar à humanidade depois delas? Pensando-as, escrevendo-as, negando a negação, priorizando a ética.
Em outro registro, Sergio Paulo Rouanet aborda a problemática religiosa de que o século XXI nasceu pródigo. Não é no mundo sem Deus que tudo é possível; ao contrário, é a fé que relativiza a ética. Rouanet atribui ao fundamentalismo, "a vertente mais maligna" das três religiões monoteístas, alguns dos maiores riscos do futuro próximo. Segundo Freud, cita ele, toda religião tem uma relação ambígua com a violência; Tânatos é banido do grupo religioso na medida em que os crentes ligam-se "por vínculos eróticos dessexualizados" e se voltam com violência contra outras comunidades, diz o ensaísta. "É a fantasia islâmica de volta a um mundo regido pela Sharia, a fantasia judaica da volta a um Israel bíblico, e a fantasia cristã da volta à moralidade dos pais fundadores".
A questão dos testemunhos avulta. Primo Levi, autor de É isto um homem?, clássico sobre o universo dos campos que durante anos o mundo se negou a ler, foi sempre reticente a respeito do testemunho, inclusive o seu próprio. Argumentava que os que ainda tinham voz para dizer o horror eram aqueles que não tinham chegado ao fundo. O testemunho, explica Marcio Seligmann-Silva, não deve ser tratado de modo positivista, pois se vincula à possibilidade da ficção, do perjúrio e da mentira, conforme Derrida. E cada voz reflete uma percepção peculiar.
Então, não basta ler as ruínas como se todas fossem iguais. O texto do psicanalista Fabio Landa nos revela "um sombrio segredo": a existência, no campo de trabalho de Kaltchund (onde se fabricavam munições), do keffer, cercado onde bebês e crianças eram jogados a cães ferozes, cães-lobos, que os trucidavam. Um relato tão terrível que preferiríamos não lê-lo. Quando se quer ir além das ruínas, porém, o conhecimento se faz essencial. "É imprescindível revolver minuciosamente as cinzas, montanhas de cinzas", para ler a História, afirma Landa. Ler para entender, ler para julgar o crime, ler para recusar a disseminação dos ódios.

14.5.10

Contra o regime iraniano

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Domingo, 16 de maio, 9 horas, o Hillel convoca para manifestação na praia de Ipanema. Ao lado, não dá para ler as letrinhas miúdas, mas o marketing é nota 10: levanta-se um tema consensual (ninguém é contra a defesa dos direitos humanos, sobretudo em países distantes) e não se ataca o Presidente Lula por sua viagem ao Irã, o que poderia soar excessivo e antipatriótico...

7.5.10

De livros, sebos, mistérios -- por Norma Schipper




(gostei tanto desta crônica, publicada emm http://www.curabulalivroclube.blogspot.com/, que quis compartilhar com vocês; as fotos são do artista plástico Otavio Schipper)


Há mais de quarenta anos freqüento sebos.

Aqui no Rio de Janeiro ou em qualquer lugar. Localizam-se nos centros, geralmente decadentes, de qualquer cidade, o que muito me atrai.

Sou uma grande andadora, flano e flano e flano horas a fio.

Um tempo fora do tempo real assim como os museus de relíquias e os bric-à-bracs.

Tudo o que é impresso me chama a atenção: as capas das velhas brochuras, as coleções que se desmembraram mas que não se perderam, as marcas d'água dos moinhos que fazem papel à mão, os livros com edições limitadas, os livros com dedicatórias e que passam de mão em mão, as folhas amareladas e manchadas, as ilustrações dos grandes artistas, as casas de edição que não existem mais ...

Um vastíssimo mundo de mistérios e de descobertas.

Houve um tempo que estudei os estilos de épocas das encadernações. Fiz assinatura de revistas francesas e andei visitando ateliês para ver os diversos tipos de couro utilizados (há um tipo apreciado e caríssimo de couro curtido pelo sol das montanhesas do Afganistão!), os 'ferros' e as folhas de ouro portuguesas.

Ainda frequento leilões de livros raros e de papeis antigos. Já colecionei antigos livros de receita, livros do início dos anos vinte sobre comportamento no lar para noivas e sobre 'sistemas'de educação física, tenho algumas primeiras edições às quais não dou muito valor.

Nunca soube bem por quê, mas nunca 'corri atrás' dos livros assinados por autores famosos, talvez me interessem mais por suas obras.

Alguns autores – Anatole France, Jorge Amado e Camilo Castelo Branco – são olhados com desdém e vendidos a peso de papel. Dizem-me Balzac ser o próximo. Será mesmo?

Tenho paixões que que não mantenho; após longo namoro, passo os livros para amigos cujos olhos brilharam ao visitar minha biblioteca.

No ano passado iniciei a compra de antigos livros para crianças e sem saber que seria transformado em filme, comprei várias edições da Alice, Carrol, L. A que mais gosto foi editada em 1934 pela LIVRARIA DO GLOBO; Barcelos, Bertaso & Cia; Porto Alegre; 1924 – com ilustrações. E também uma outra de 1921 feita em Londres com 21 ilustrações, incluindo oito em cor, separadas do texto.

Uma livraria pediu-me que eu alugasse alguns destes livros pois enfeitariam uma vitrine onde estariam expostos com as novas edições e com relógios antigos. Eu incluiria baralhos e um grande espelho.

Imagine tirar de casa estes livros sonolentos e silenciosos.

Pedro Nava e Drummond trocaram cartas sobre a arte de andar pelos sebos.
" ... sebos, a poesia dos bárbaros que não entendem a dimensão profunda e a poesia substancial do livro usado. Prazeres eternamente ignorados dos selvagens que só compram livros novos ... Poesia dos objetos humanizados ao contato de muitas vidas e ao toque de muitas mortes."

Drummond responde-lhe: "Saio deles com um pacote de novidades velhas e a sensação de que visitei, não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, contra o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão."

Despeço-me nostalgicamente destes espaços antigos, assistindo o sucesso das compras livrescas na Estante Virtual.

Também sou um ser fora do tempo, acostuma-se com tudo, porém.

3.5.10

Casa de Anne Frank faz 50 anos



Foi só na minha terceira viagem a Amsterdam que visitei a Casa de Anne Frank, que comemora 50 anos neste 3 de maio [ um milhão de pessoas passam anualmente pelo local, transformado em museu, onde Anne e sua família se esconderam por dois anos, durante a Segunda Guerra]. As celebrações do cinquentenário contaram com a presença da rainha da Holanda, de políticos, da mídia.

"Não poder pôr os pés do lado de fora me chateia mais do que consigo dizer, e estou apavorada porque podemos ser fuzilados se o nosso esconderijo for descoberto”, escreveu a adolescente no diário, que depois se tornaria um best seller mundial. Agora, praticamente todos os manuscritos originais que vieram a formar o livro estão na Casa, bem como contos de autoria de Anne e um caderno com suas citações favoritas.

Minha relutância se devia à impressão de que percorreria um cenário óbvio, cheio de informações excessivamente conhecidas. Ademais, há algo de incômodo numa mostra que, focada no cotidiano (com tudo o que o cotidiano tem de prosaico, mesmo em situações-limite) de pessoas que depois seriam deportadas para os campos de extermínio, não pretende explicar como a consciência européia curvou-se ao totalitarismo nem revela toda a dimensão da colaboração com o nazismo.

Outro incômodo: enfrentar a fila de turistas que todos os dias se aglomeram ali.

Enfrentada a fila, porém, a Casa não deixa ninguém indiferente. A garota morena de classe média, rebelde e otimista, que sonhava ser escritora, transforma-se na neta do idoso casal japonês cujos olhos dizem "Hiroshima" ao percorrer desenhos, páginas de revistas da época e fragmentos de escrita. E se transforma também na filha pianista da professora cristã do Texas, de casaco cor-de-rosa e mapa na mão, que tem só três dias para percorrer a cidade e optou por homenagear Anne Frank em primeiro lugar. Pois se Anne somos nós, como não chorar por ela?

A casa, com suas escadas íngremes, seu sótão, suas janelas sobre o canal, é uma construção igual a centenas de outras nessa Amsterdam desde o século XVII tão cosmopolita, tão aparentemente previsível e acolhedora, mas que não pôde, ou não quis, salvar os judeus diante do avanço nazista. O que me provoca arrepios, à saída, é a evocação da marcha furiosa das botas na calçada, o som dos gritos e, já agora, o discurso raivoso contra os "indesejáveis" nessa Europa culta em que flanar é tão seguro, tão fácil...