18.3.11

PAUSA

A falta de tempo tem impedido que eu escreva no blog, de modo que interrompo as postagens. Ao lado, continuem a ver novidades de alguns sites judaicos, assim como o arquivo.

1.3.11

A Formação e a Convivência Multiétnicas no Brasil e o Mito de sua Cordialidade

Reproduzimos abaixo uma das muitas conferêcias em que Moacyr Scliar fala, com a generosidade de sempre, sobre tudo o que o movia como homem, brasileiro, judeu e humanista 

 

SEMINÁRIO CULTURA E INTOLERÂNCIA

SESC Vila Mariana | São Paulo, novembro de 2003
 Moacyr Scliar[1]  

Atender a um convite do Sesc, mais que um prazer, é uma honra, porque esta é uma instituição cujo papel na cultura brasileira já está mais que consolidado.

Antes de vir para esta palestra, dei uma passadinha na exposição do Tico-tico, uma revista que eu lia, ainda na minha infância, para que vocês vejam como sou antigo. Essa revista já vai fazer 100 anos. Fiquei realmente maravilhado com esta exposição, mostrando como essa revista infantil evidenciava toda uma situação cultural.

Ocorre o mesmo com o tema da intolerância. Um tema que remete a uma patologia cultural à qual eu sempre fui particularmente sensível, até pelas minhas próprias origens. Sou filho de imigrantes, meus pais vieram da Rússia. O Rio Grande do Sul é um dos estados que receberam maior contingente migratório naquela fase em que o Brasil abriu seus portos para a emigração que saia da Europa, recebendo alemães, italianos, eslavos, árabes, e também esse grupo de judeus russos que fugiam de uma região convulsionada pelo final da Primeira Guerra Mundial e pela revolução de 1917. Vinham em busca desse verdadeiro paraíso que era o Brasil para eles. Era um projeto de colonização agrícola que começou em 1904, portanto, completará seu centenário - que no Rio Grande do Sul já está sendo lembrado - no próximo ano. Somou-se à saga dos imigrantes no Rio Grande do Sul.

Meus pais chegaram ao Brasil ainda jovens, mas esse projeto já havia dado errado, porque foi implantado numa região inóspita, sem condições para o desenvolvimento da agricultura. Esses colonos foram abandonando suas terras e se dirigindo para as cidades próximas ou para Porto Alegre, que foi o lugar aonde meus pais chegaram, onde nasci e me criei, num bairro que é muito conhecido lá, muito semelhante ao Bom Retiro aqui em São Paulo, o bairro do Bomfim, um bairro típico de imigrantes. As fotos que vejo daquela época me lembram uma aldeia da Europa oriental, as ruas cheias de gente, vendedores ambulantes, casinhas minúsculas, muito pobres, onde a cultura judaica era muito forte. Nasci e me criei dentro dessa cultura. Muito cedo tomei conhecimento dessa questão da minha diferença, de que eu era diferente.

Fiz o que se chamava curso primário na época no colégio do bairro, uma pequena escola fundamental, onde minha mãe, a pessoa a quem devo a minha iniciação na literatura, que me ensinou a amar os livros, a escrever e me educou, era professora. Quando terminei o curso primário, eu teria de continuar num outro colégio. A maior parte dos meninos e meninas do bairro do Bonfim fazia isso em escolas públicas, mas meus pais, por alguma razão que até hoje não descobri - agora é tarde para perguntar, porque eles não estão mais aqui - resolveram me enviar para um colégio católico.

Há um mês, voltei a esse colégio para receber uma homenagem. A direção da escola conseguiu trazer um dos professores que me deu aulas, um homem que me influenciou muitíssimo. Ele era um irmão marista que depois abandonou a carreira religiosa e se tornou um militante na organização do Movimento dos Papeleiros na região da Grande Porto Alegre. Esse homem fez um discurso que me comoveu muito. Ele disse que queria me pedir desculpas, pelo fato de que eu tinha sido tratado com intolerância na aula dele, que eu freqüentei. Isso não correspondia inteiramente à verdade, não cheguei a ser perseguido, nem mesmo discriminado, mas eu tinha, sim, a noção de que eu era uma pessoa diferente, que eu não fazia parte desse grupo que reunia a maior parte dos alunos e que isso teria conseqüências muito sérias.

Por exemplo, eu tinha a clara noção de que estava condenado ao Inferno e que iria queimar em suas chamas por toda a eternidade. A Academia Brasileira de Letras promete a imortalidade, mas tenho certeza de que a imortalidade não chega nem aos pés da eternidade, que deve ser muito mais duradoura e, passada no inferno, muito mais dolorosa do que qualquer imortalidade. Essas eram, é claro, as coisas que correspondiam às minhas fantasias, porque me lembro, por exemplo, que perguntei a um dos professores se eu estava mesmo inevitavelmente condenado ao Inferno. Ele pensou um pouco e me disse que se eu fosse uma pessoa muito boa, honesta e justa, que seria até possível que eu fosse para o Purgatório. Pelo menos havia essa alternativa. Era algo de muito curioso.

Várias coisas aconteciam nessa aula. Eu pensava que era o único aluno de origem judaica. No entanto, havia mais um, mas eu não sabia e não fiquei sabendo por muitos anos, porque esse menino tinha um sobrenome, diferentemente de Scliar, que é um sobrenome claramente estranho, que podia passar por um sobrenome brasileiro ou português. Ele usava esse fato para fazer de conta que não tinha nada a ver com o judaísmo. Ele realmente seguia toda a prática religiosa e eu só descobri o fato anos depois de ter saído do colégio. Havia também um menino que era protestante. Esse menino sofria muito porque, além disso, vivia um dilema familiar: filho de mãe católica e pai protestante, acabou se convertendo. Lembro-me de sua cerimônia de conversão, com todo o colégio reunido no pátio. Pode-se imaginar o sentimento de culpa que se apossou de mim nessa ocasião. Ali estava o rapaz que tinha tido a coragem de se converter, enquanto eu persistia teimosamente nessa adesão à tradição judaica.

Finalmente, havia um menino que era negro, o único negro da aula, que, portanto, também era visto de forma diferente. Houve uma vez em que, um pouco antes de começar uma prova, ele estava estudando. Quando a prova começou, inadvertidamente, ele colocou o livro aberto embaixo da carteira, que tinha um compartimento para guardar a pasta e os livros. Colocou o livro, mas ele estava aberto. No meio da prova, o professor se deu conta de que o menino estava com o livro aberto debaixo da carteira e, sem vacilar, recolheu sua prova. Resolvi dizer que aquilo era uma injustiça, que o menino não estava colando, mas ninguém acreditava, nenhuma das pessoas que estavam ali acreditava que ele fosse inocente, achavam que realmente ele tinha que ser culpado.

Essas foram doses homeopáticas do problema da intolerância. A intolerância não é, no entanto, uma rua de mão única. Freqüentemente, é uma rua de duas mãos. Porque nessa comunidade em que eu vivi, também havia intolerância, numa espécie de reação contra o meio externo. Essas comunidades tendem a se fechar em si próprias. Não apenas a comunidade judaica, o mesmo acontecia com a comunidade alemã e a italiana, formavam-se "quistos", como se dizia naquela época, fechados em si próprios, com regras próprias, nos quais o contato com o exterior era severamente controlado, quando não proibido. Nós tínhamos um vizinho que tinha três filhas, duas delas casaram, como era de se esperar, com rapazes judeus, mas havia uma outra filha, que, coitadinha, era bem feia. Lá pelas tantas, essa moça arranjou um namorado, só que ele não era judeu, era gói, para usar a palavra que designa desde a Bíblia o gentio. O pai não queria que ela casasse, ela casou. Ele não apenas a expulsou de casa e rompeu relações com ela como a considerou morta e rezou a oração dos mortos pela alma dela, como se a filha realmente tivesse deixado de existir. Isso para que se saiba que a intolerância vem tanto de uma parte como de outra.

O Brasil tem uma longa história de intolerância. Parte dessa história estudei nesse livro que se chama "Saturno nos Trópicos", um ensaio sobre a melancolia brasileira. Esse tema me fascina há muito tempo, por várias razões. Porque é um tema literário, em primeiro lugar, um tema social e também um tema médico. A presença dos médicos nessa área é muito grande. O ponto de partida para esse estudo foi o seguinte: o conceito de melancolia, que é um conceito antigo, da medicina grega, era um conceito, ainda que clássico, pouco usado, mas foi subitamente recuperado no começo daquilo que chamamos de Idade Moderna, ou seja, nos séculos 14, 15, 16, séculos que vêem o advento de uma nova ordem política, social e econômica. É uma ordem social que se caracteriza por um progresso muito grande em termos de ciências, de letras, de artes, por uma descoberta de novos lugares, pelo incremento das viagens marítimas, do comércio internacional, por uma busca verdadeiramente desvairada de riquezas e também do prazer, sobretudo o prazer sexual, uma época de relaxamento de costumes, em que a rigidez que caracterizava a Idade Média é abandonada e dá lugar a um contato muito mais livre e franco entre os sexos. A conseqüência disso é que uma nova doença surge na Europa nessa época, a sífilis, que logo se transformou numa epidemia muito mais avassaladora do que é a AIDS hoje em dia, porque a sífilis se transmitia com muito mais facilidade, ainda que não fosse tão letal quanto a Aids. Essa situação era vista pelos filósofos, escritores e intelectuais com muito ceticismo, muito pessimismo, muita melancolia. Melancolia passou a ser atitude dos espíritos superiores, gente que vivia nesse verdadeiro caos político, social e econômico, que tinha, claramente, um componente maníaco. Na verdade, a modernidade começa bipolar, no sentido do termo médico, ou seja, a alternância entre melancolia, que hoje chamamos, do ponto de vista médico, de depressão, e a mania, que é exatamente essa atividade incessante e desenfreada.

O importante é que esse período corresponde também à descoberta do Brasil. O Brasil também nasce sob o signo da tristeza, da melancolia e essa melancolia resulta em grande parte da intolerância. É uma coisa impressionante como o nosso país tem um passado de injustiças terríveis em relação a populações oprimidas. Começamos a história do Brasil com o massacre indígena, um verdadeiro genocídio que foi a morte dos índios, praticada de várias maneiras, inclusive com um antecedente da guerra bacteriológica. Uma das maneiras de dizimar os índios no Brasil era usar a varíola, uma doença extremamente freqüente e contagiosa então. Quando os brancos queriam se apossar das terras indígenas, não estou falando de 1500 ou 1600, estou falando de um período até recente, espalhavam roupas de varíolosos nas trilhas indígenas. Os indígenas vestiam essas roupas, contraiam varíola e morriam como moscas, porque eles não tinham nenhum tipo de defesa contra essas doenças que eram trazidas da Europa. Doenças como a gripe, por exemplo, podiam matar populações inteiras de indígenas, porque eles não tinham defesas orgânicas.

A segunda leva dos oprimidos e perseguidos é representada pelos negros e, de novo, temos uma opressão muito grande. Os negros são trazidos como escravos, não são considerados seres humanos, aliás, o mesmo acontecia com os índios.  Durante muito tempo se discutiu se os índios tinham alma, se eles podiam ser considerados seres humanos iguais aos outros seres humanos. O mesmo acontecia em relação aos negros. As idéias médicas sobre a situação dos negros são impressionantes. Uma delas, por exemplo, é de que a cor escura da pele dos negros resultava de uma doença de pele que se propagava de geração em geração e que dava essa cor "doentia". Escravatura era considerada uma situação normal, mas tentar fugir da escravatura era considerado doença e havia um termo médico para descrever a situação daqueles negros que tentavam fugir da escravidão, "drapetomania", a mania de querer fugir da escravidão. Essa doença era tratada; o tratamento consistia em amputar os artelhos dos pés para os negros não poderem fugir. Isso era feito por médicos. Os doutores nazistas dos campos de concentração já tinham antecedentes entre os médicos que, sobretudo nos Estados Unidos, viveram na época da escravatura.

A atitude da classe médica em relação à questão do mulato era curiosa. Isso aparece em trabalhos da chamada Escola Antropológica da Bahia, uma escola que foi muito famosa no final do século 19, formada por médicos que se dedicavam também à antropologia e a medicina legal. Deles, seguramente, o mais famoso foi Nina Rodrigues, catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia, que fez muitos estudos sobre o mulato. O mulato era visto como um tipo essencialmente patológico. A condição de mulato era uma condição enfermiça, que gerava várias doenças. Duas dessas doenças eram mencionadas: uma era a tuberculose e outra era chamada neurastenia, um termo que surgiu nessa época e que significava fraqueza de nervos. A idéia que mulatos eram pessoas com fragilidade psicológica fazia com que eles fossem ligados à bebida, ao suicídio, à vadiagem, ou seja, eram pessoas intrinsecamente patológicas.

Essas idéias perduraram por muito tempo. A pergunta que se pode fazer - e essa é uma pergunta importante - é a seguinte: será que, realmente, os mulatos tinham, por exemplo, mais tuberculose? Provavelmente tinham. Mas, por que? Porque eram mulatos ou porque viviam em condições em que a tuberculose se transmitia mais facilmente? Ou, ainda, porque eram pobres e viviam em tugúrios cheios de gente, onde o bacilo da tuberculose podia facilmente se transmitir? Muito provavelmente, era disso que resultava a tuberculose dos mulatos e também da opressão a que eles estavam submetidos que resultavam as condições psicológicas deles. Quer dizer, o que temos aqui é uma inversão de causa e efeito, o que é efeito passa a ser causa e vice-versa. Isso é típico do raciocínio intolerante. O raciocínio intolerante tende a fazer aquilo que se diz em inglês "to blame the victim", a vítima é que é culpada pelas coisas que lhe ocorrem. Então, o mulato, por ser mulato, é culpado de ter tuberculose, é culpado de ter neurastenia e assim por diante.

Não é preciso ter dúvida de que intolerância é uma coisa que está presente no nosso mundo. Eu vinha no avião, lendo um suplemento do The New York Times.  O artigo que lia era sobre o massacre dos armênios pelos turcos em 1915, um dos episódios mais sombrios da história da humanidade, em que 1,5 milhão de pessoas foram assassinadas com muita crueldade e de uma forma verdadeiramente dantesca. Até hoje esse massacre não é reconhecido como genocídio, embora os descendentes de armênios tenham se esforçado para que isso ocorresse. Há um problema político. A Turquia é uma aliada do Ocidente e o governo turco não quer que esse episódio histórico seja rotulado como um genocídio, ainda que historiadores turcos estejam de acordo e confirmem o fato. Como isso poderia implicar numa acusação, mesmo que se refira a um aspecto do passado, esse fato é escamoteado. Este é um aspecto que eu queria frisar, o fato da intolerância muitas vezes ser mascarada. Outro ponto que eu acho importante é o seguinte: qual é, na verdade, a raiz da intolerância?

Tomemos o caso que mencionei, dos judeus. Qual é, na verdade, a origem do anti-semitismo? Será que a origem do anti-semitismo está ligada ao fato de que, segundo conta o Novo Testamento, judeus reunidos diante de Pôncio Pilatos pediram a morte de Cristo? Será que é isso? Poderia ser isso, mas não deixa de ser surpreendente o fato de que o próprio Jesus Cristo era judeu, que seus discípulos eram judeus, que ele pregava para judeus e que os judeus estavam com ele também no momento de sua morte. Quer dizer, isso significa sim, rotular de judeus apenas aqueles que cometeram o que até hoje recebe o nome de judiaria, significa realmente uma discriminação. Mas não creio que a origem do anti-semitismo ou do antijudaísmo, que é o termo mais indicado, esteja relacionada a esse episódio. Esse episódio foi usado dentro de um mecanismo de poder e é essa a tese que eu gostaria de deixar aqui: a intolerância é algo que está a serviço de um mecanismo de poder - poder político, poder social e poder econômico. Esta é uma noção muito importante.

Quando é que o sentimento judaico cresce mais? Na Idade Média, particularmente, em seu final. O que ocorreu no final da Idade Média? Qual é o papel que os judeus desempenham no final da Idade Média que os caracteriza como um grupo odiado e menosprezado? A economia medieval era uma economia muito simples. Basicamente, havia duas classes: uma que era dominante, dos senhores feudais e também a classe clerical; de outro lado havia os servos, que trabalhavam na terra, porque esta era uma economia basicamente agrícola, ou seja, que girava em torno da troca de mercadorias, do escambo da produção agrícola por outros produtos nas feiras. Porém, os senhores feudais também precisavam de dinheiro, para financiar expedições guerreiras, para adquirir bens de consumo luxuosos, para a construção de castelos e assim por diante. Alguém precisava ser o depositário desse dinheiro, gerir esse dinheiro, emprestá-lo, movimentá-lo. Quem iria fazer isso? Dinheiro era considerado, naquela época - e esse pensamento aristocrático acompanhou o Brasil e a história do Brasil por muito tempo - uma coisa suja. Gente "fina" não tocava em dinheiro. Apenas os impuros que podiam tocar em dinheiro.

Havia, no entanto, um grupo que podia mexer no dinheiro, o dos judeus. Os judeus se tornaram, então, "movimentadores" do dinheiro, os usurários. Isso era uma coisa extremamente conveniente para o sistema feudal, porque o senhor feudal pedia dinheiro emprestado, o usurário emprestava e cobrava juros, porque havia um risco grande, não só do dinheiro, o risco de sua própria cabeça. Porque quando o senhor feudal não podia pagar o empréstimo, tudo o que ele fazia era desencadear um massacre de judeus, em que os usurários eram mortos e a dívida automaticamente se extinguia. O que havia era uma verdadeira queima de arquivo, porque o arquivo estava na cabeça do usurário.

Essa situação persistiu até o final da Idade Moderna, quando, de repente, surgem os bancos, o que muda completamente o critério do empréstimo a juros, que passa a ser uma atividade nobre. Os bancos - casualmente eu estava visitando um antigo banco em Porto Alegre - eram estabelecimentos gigantescos, imponentes, luxuosos, verdadeiros templos do dinheiro. Não era mais aquele usurário de nariz adunco, com os dedos em garra. Agora, era gente fina cuidando do dinheiro. Com isso, o empréstimo a juros passou a ser uma atividade perfeitamente tolerável. Qualquer um de nós vai hoje ao banco e tira dinheiro, mas nenhum de nós pensa em desencadear um massacre das pessoas que estão lá, mesmo porque aquelas pessoas são funcionários, não têm muito a ver com isso.

Esse exemplo mostra que, na verdade, a intolerância pode existir subliminarmente, em embrião, mas ela só ganha momento, só ganha força quando está a serviço de um mecanismo de opressão, sobretudo do ponto de vista econômico, social ou político.

Um exemplo muito óbvio, muito evidente, é o dos irlandeses. Temos na Irlanda, há séculos, uma luta entre católicos e protestantes. Será que alguém acredita que essa luta tem a ver com o fato de que um grupo pratica uma religião de tal maneira e outro grupo pratica a religião de outra maneira? Um grupo entra num tipo de igreja, outro grupo entra em outro tipo de igreja. Será que alguém acredita  que as pessoas se matam por causa disso? Não é por isso que as pessoas se matam. Tanto é verdade que nos Estados Unidos, por exemplo, há irlandeses católicos e protestantes que convivem tranqüilamente.

É que, na Irlanda, católico era pobre e protestante, rico. O que havia era uma cisão entre ricos e pobres. Mas, por outro lado, os católicos eram - e são ainda -um contingente populacional importante. Essa intolerância está a serviço de manter um status quo, uma situação de domínio.

Espero ter lançado algumas inquietações a respeito desse tema, que acho muito importante, um tema cuja magnitude não podemos diminuir porque, realmente, nesse mundo em que vivemos, podemos ver a qualquer momento gente morrendo por causa da intolerância e da perseguição e dar-se conta disso é uma tarefa da nossa época. Precisamos esclarecer, mostrar para as pessoas que o raciocínio intolerante é, como disse no início, uma patologia social, uma doença psicológica que acomete grupos humanos inteiros e que se manifesta em violência, discriminação e sofrimento inusitado. Muito obrigado.


[1] Autor de 67 livros em vários gêneros, com obras publicadas em diversos países com repercussão na crítica. Detentor dos prêmios Academia Brasileira de Letras (1968), Joaquim Manuel de Macedo (1974), Cidade de Porto Alegre (1976), Brasília (1977), Guimarães Rosa (1977), entre outros. Foi professor visitante na Brown University, Department of Portuguese and Brazilian Studies e na Universidade do Texas em Austin. Colunista dos jornais Zero Hora, de Porto Alegre, e Folha de São Paulo. Médico especialista em Saúde Pública e Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública.